Nada fora do comum....

... um rapaz sem qualquer qualidade marcante, esguio, cabelos ate abaixo dos ombros e cara de rato, com diminutos olhos negros, brilhantes. 

"Aqueles olhos não combinam com o resto" pensou a velha sentada à uma pequena mesa de um café qualquer. 
O rapaz entrara de repente, como que perdido, as mãos nos bolsos. Parou ao balcão.

"Qualquer lugar serve quando não se sabe onde se quer ir, afinal de contas" pensava o rapaz com cara de rato, esperando seu expresso. Observava de soslaio as pessoas ao redor, ultimamente andava sempre observando, já que tinha pernas e algumas -muitas- dividas com tacos de baseball.
A velha pareceu-lhe um bom alvo: uma coroa com ar de boa vovó, ela cheirava a grandes presentes de natal para seus netos mimados, fascistinhas arrogantes. Céus, devia ter uns 80 anos. Assim tao perto do criador, bem poderia pagar-lhe o café.

Ela recebera seu cappuccino e estranhamente cavava com a colher um buraco central no topo da espiral de chantilly, com um sorriso torto no rosto branco-pálido. Olharam-se. Foi até ela e pediu licença para sentar-se à mesa.

" por favor" ela respondeu sorrindo.
- não lhe quero incomodar mas... A senhora lembra muito minha amada avó, sabe... Eu a perdi ainda com 12 anos.
- é mesmo? - disse ela sorrindo, comendo em pequenas colheradas o chantilly polvilhado de canela. - qual o nome de sua falecida avó? 
- é.. Era Helena...
A velha continua a tomar seu café. Os olhos mortiços, quase indecisos entre serem claros ou escuros, pousados nos dele. 
- eu sinto realmente falta dela sabe... Sinto mesmo, eu a amava.
Silêncio. Tanto quanto é possível se ter silêncio em um café. Os olhos dela. O sorrisinho torto com as pequenas colheradas de chantilly. Parecia tão errado, de alguma forma.
Ele sentiu algo gelado nos pés, a enrolar-se nas canelas e subir ate os joelhos.
"maldita velha que não me acompanha, malditos olhos de tubarão " pensava o rapaz, a cara lembrando ainda mais um camundongo. 
- desculpe, a senhora não tem vontade de conversar, vou...
- Eu amei alguém como você - ela disse, sorrindo -alguém que achava que o amor era moeda de troca.
Um segundo antes de sentir-se ofendido, o frio subiu-lhe pelas pernas, dentro do jeans, dentro dos ossos, como muitas mãos geladas, tateando.
- esse alguém, - continuou ela, terminando finalmente com o chantilly -  fazia-me sentir ao mesmo tempo especial e descartável.
O frio agora lhe abraçava o estômago, não pode conter um calafrio.
- o que... Não sei o que há comigo - ele disse, estremecendo - porque não trazem logo meu expresso? - perguntou, inquieto. Olhou para o balcao, a barista estava conversando com uma mulher.- ei! EI! Onde está meu expresso? EI, NÃO OUVIU? - Perguntou ele, levantando-se. A mulher atrás do balcão conversava, tranquila. 
O frio estava agora dentro do peito, entre as costelas. Parecia lhe apertar o coração. 
- porque ela não ouve?
- sente-se querido, está tudo bem.
Ele sentou-se, confuso, o frio dói, e o que ela diz.... Precisa ouvir o que ela diz. Parece importante de alguma forma.
- sinto frio - resmungou encolhendo-se 
- eu sei. 
- não estava frio antes. 
- não meu bem, mas escute a história.
- sim...- sentia-se como que sedado - O que aconteceu a ele? 
- ele se foi, há muitos anos, eu ainda tinha menos da metade da idade que tenho agora, com ele se foram também muitas coisas, muita dor, ciúmes e solidão. O amor não, este sempre fica.
Como duas mãos ao redor de seu pescoço, o frio parecia sufoca-lo, o corpo formigava, insensível, endurecido tal como ficam as mãos expostas à água em dias de inverno. 
Ele se levantou, levou as mãos ao pescoço, em agonia. 
- o que é isso? Ah ... O que é isso? - balbuciou tremendo de frio
A velha, impassível, tomou um gole do cappuccino sem deixar de olhá-lo.
Aqueles olhos, aqueles olhos frios que atravessam.
- isso, meu amor, é o que sempre acontece quando conversamos, preste atenção e verá que não está realmente acontecendo, pois você não tem mais um corpo para sentir dor. 
- com quem está falando vó?
A velha olhou para o lado, seus olhos pareciam secos, ardiam.
- ninguém querida - respondeu sorrindo à moça ao seu lado - que bom que chegou!
Beijou-lhe as mãos, contente, e elevando a voz pediu à mulher no balcão : "querida, faz-nos outro cappuccino, também com chantilly, por favor."



Dedicado a Stephen, que adora pessoas com cara de rato.

Comentários

  1. Obrigada por compartilhar o texto. Me faz pensar em cafés quentes e pessoas frias, me faz pensar como eu quase não lembrava como poderia o frio ser tão... frio. Também me faz pensar em publicar meus próprios contos... talvez um dia.

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