Antiga nova história

por que tu não te lembra e eu fui feita para lembrar.

Há qualquer coisa que me sustenta, uma rede de linhas tênues, repuxadas em minhas partidas asas.
Penso em ir, erguer-me do chão, flutuar sobre a terra, voar como as vezes voo em meus sonhos. Mas vejo que se fosse assim, não seria nada, ou sobraria só o que tenho sido. E minha vaidade se divide.
Ainda quero ser, como já em outros tempos fui, e veja só: sou capaz de te contar ainda as historias:

Me agradava partir aquelas folhas fibrosas à beira do rio. Era coisa dos escribas, e me era suporto colher. Ali contariam historias, vidas lindas e breves, palavras dos mortos. Sabia escolher muito bem apenas tocando nelas e portanto eu fora poupada, apesar de não poder ver. Entendia o mundo por que já o tinha visto durante meus 8 primeiros anos de vida, não me assustava ter vivido os últimos 9 na escuridão.  Lá dentro, ao abrigo do sol nas câmaras dos meus deuses, tu eras só uma voz, a contar-me historias enquanto eu percorria com as minhas mãos as paredes talhadas pelas tuas. 
Tu tinha pena que eu não podia ver, eu amava poder sentir.
Cheguei tarde, ou tua voz se calou muito cedo, roubada por seth em uma noite sem lua.
...
Houve uma época, de rendas e cetins alvos como as nuvens de verão, apenas o que era suposto uma mocinha decente usar. Era uma tarde fresca naquele jardim, o par de bancos um de frente para o outro e acima o arco de rosas.
Nós três sonhávamos em sermos como as bruxas que escolhiam seu destino, e tinham a sorte nas mãos, naquela tarde fizemos pequenos camafeus, dentro do tecido bordado uma mecha de nossos cabelos e o nome das nossas paixões.
Quando mais tarde vieste, sentado do meu lado num dos bancos e a acariciar meus pés passei-lhe o pequeno artefato discretamente com medo de ser vista pelas duas no banco à frente, deste-me o sorriso mais encantador, pois já não importava o que era, fosse o que fosse, amávamos esses pequenos cuidados. E eu, já naquela vida, guardava as lembranças em frascos tortos de boticário.
...
Em outro tempo, eu pintava os olhos com pó de asas de borboletas, enrolava-me em peles finas de animais, punha em meus olhos cílios postiços feitos dos cabelos grossos e negros de crianças indianas. Pérolas, algodão egípcio e rapé, amei todos os vícios.
Por esta época, nos vimos, fui-me embora, a mão direta enluvada pousada no leme de um barco sem rumo. Era tudo tão impossível! Chegara muito cedo e sabia que não havia espaço. Segui, sozinha, por aquela existência.
...
procurei acertar e ainda assim parece-me que errei, uma, duas, mil vezes, pois com exceção das memorias mais antigas, em todas tu estava lá, em todas passaste por mim, em todas marquei em ti - indelével - a minha presença... e em todas eu parti.
Sou criatura feita dos erros, indomável, perdida, tenho já vontade de partir, mas isto por não ver porque deveria ficar, e veja só: Há sempre um outro tempo, prestes a começar.

me deixe contar e recontar, as historias dessas pessoas que vivem na minha cabeça.

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