Pedaços de lembranças

O vale que escolhemos emolduraria a nossa terra, que consistia apenas em uma colina de grama muito verde e macia.
Nosso pequeno grupo contava com pouco mais de oito pessoas, quase todos jovens e estava-mos muito felizes, minha prima se casaria com meu irmão na próxima lua e meu pai nos comprara duas lindas éguas e um cavalo, em uma negociação amistosa com aqueles que permaneciam como nômades, mesmo que eles não nos aprovassem mais.
Eu recebera tecidos novos e pequenas contas cor-de-sangue, pois agora eu era mais do que uma menina, eu tinha o dom de ouvir os cavalos.
E foi enquanto eu dizia a uma das éguas o quanto ela era bonita, (e me surpreendia por ela ter olhos verdes muito humanos) que ela me avisou que homens estranhos tinham adentrado o vale. Não soube o que fazer, vi os cavalos agitarem-se. Naquele momento era-mos apenas eu, minha prima e meu pai. Em pouco tempo eu os vi. Sua chegada não foi simples, pequenos objetos cortantes foram jogados contra uma pilha de lenha, em sinal de aviso.
eles tinham longos cabelos compridos e ondulados, e corriam muito rápido campo adentro, suas roupas nada tinham das nossas, tanto quanto a linguagem que usavam. Agarrei a mao de meu pai, mas ele logo se soltou, montou no cavalo agarrado à crina e tentou assustar os homens, mas eram muitos.
Mulheres e crianças se aproximavam, falando a desconhecida linguagem, meu jovem irmao, meus primos e outros de nosso grupo apareceram e uma luta terrível e sangrenta teve inicio.
Vi meu pai tirar de dentro da manga a sua adaga mais fina. Pedi que os cavalos se pusessem sobre os desconhecidos, e eles correram pelo campo derrubando-os, mas isso pouco fez efeito.
Vi o pasto encharcar-se de sangue, sangue meu à distancia, nao me movi. Uma criança de pouquíssima idade correu na minha direção. filho daquele povo desconhecido, escondeu o rosto pequenino nas minhas saias e com o bracinho esticado agarrou-se aos meus cabelos, nas mechas que eram trançadas com fitas. Abraçei-o, e chamei os cavalos, enquanto eles vinham a luta silenciou.
Minha prima chorava baixinho sentada no chao, ao meu lado.
Uma das mulheres daquele povo estranho trouxe meu irmão para mais perto de nós, e outros a ajudaram a carrega-lo.
Nao nos restava nada. Éramos agora somente os tres, e nossos cavalos. Minha égua tinha o focinho manchado de sangue vermelho vivo e eu sentia a perda de meu pai.
Em um acordo silencioso, eles nao nos mataram. O menininho permanecia agarrado à mim.
Nosso campo era agora deles. Meu irmão se casaria com a mulher que eles escolheriam, mas morreu naquele mesmo dia, tendo ferimentos que eu nao fora capaz de curar.
Minha prima perdera a razão, nada dizia. Eu permaneceria para sempre como a cigana que falava aos cavalos, intocável, sozinha, guardando segredos de nosso proprio povo que nós havíamos abandonado.
Nao me lembro de nada a mais sobre isto. Nao me lembro de ver o sol alguma vez mais depois da terra provar o sangue de meu pai.

Comentários

  1. Tenho sonhos assim. Meu bisavô tinha me avisado que eu e você temos coisas em comum.

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  2. Sonhei só uma vez com o ser cigana. Você já conhece a historia.

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